Foi o que aconteceu com Rob Curtis de 36 anos, que teve seu atendimento negado no estúdio Sang Bleu localizado em Londres. Curtis havia agendado sua tatuagem há meses e efetuado um depósito no valor de €1000.
No dia 28 de janeiro, ele foi ao estúdio para tatuar um desenho geométrico em sua coxa com a artista Malvina Wisniewska. Ao preencher o termo de consentimento para a realização do procedimento, no qual há perguntas sobre problemas cardíacos ou sanguíneos, Curtis assinalou que era portador de HIV. Em torno de 10 minutos após entregar o termo de consentimento, a recepcionista o informa que, Malvina não iria atendê-lo, pois não tatua pessoas com soropositivo. Segundo Curtis, a recepcionista que é aprendiz no estúdio, ficou “mortificada” ao dar a notícia a ele. “Eu sei que algumas pessoas sabem que há medicamentos e que o risco é baixo, mas Malvina simplesmente não se sente confortável, então ela não vai fazer isso’’. A recepcionista se ofereceu para verificar se outro artista estaria disposto a tatuar um soropositivo, Curtis recusou, “não tenho certeza se quero fazer negócio aqui novamente. Não houve uma oportunidade de conversar sobre, mas ficou claro que ela não faria o trabalho”.
Segundo o Dr. Michael Brady, diretor médico do Terrence Higgins Trust, não existe nenhum caso documentado sobre a transmissão de HIV em um procedimento de tatuagem. Todos concordamos que adornos corporais como as tatuagens são verdadeiras obras de arte, mas não podemos esquecer que trata-se de um procedimento praticamente cirúrgico. Para depositar a tinta na pele, a agulha faz repetidas micro-perfurações. Existe o uso de materiais cortantes e sangue, portanto, o mínimo que se espera, é um local adequado para o procedimento, bem como material descartável e biossegurança, assim garante-se um trabalho de qualidade, durabilidade, mas acima de tudo, um procedimento seguro para o cliente e para o tatuador(a). ‘’Se um tatuador está aderindo a essas precauções, não há razão médica ou jurídica para afastar alguém que está vivendo com HIV. As pessoas que estão tomando medicamentos eficazes contra o HIV são seguras e não podem transmitir o vírus através de agulhas ou de qualquer outro meio”, ressalta o Dr Brady. Na verdade, tal ato é ilegal no Reino Unido. Desde o ano de 2010, existe a Lei da Igualdade que destina-se a proteger legalmente as pessoas contra a discriminação no local de trabalho e na sociedade como um todo. A lei oferece proteção contra: a discriminação de idade, deficiência, reatribuição de gênero, casamento e parceria civil, gravidez e maternidade, raça, religião ou crença, sexo e orientação sexual. De acordo com esta legislação, qualquer indivíduo diagnosticado com HIV está protegido sob a categoria de deficientes, podendo entrar com uma ação nos tribunais civis caso se sinta discriminado.
Curtis ainda comentou que o estúdio não estava disposto a lhe devolver imediatamente o valor que havia depositado. “Eles disseram que não tem seu dinheiro agora, mas ela pode fazer o PayPal para você. Eu disse: “Não vou sair até que eu receba um reembolso”. Após uma discussão com o gerente, o valor depositado foi devolvido a ele, mas o dano já havia sido feito. Curtis contou em uma entrevista ao Buzzfeed News que ficou profundamente ofendido: “Foi horrível. Eu estava realmente chocado. Eu não costumo me sentir um cidadão de segunda classe todos os dias”.
Ao chegar em casa, Curtis lembrou que havia postado em seu Facebook que ele estava prestes a se tatuar, então mudou seu status para ‘’não usar este estudio”. Imediatamente as pessoas começaram a perguntar o que havia acontecido – “ficou claro que eu havia sido discriminado de alguma forma”. Curtis então decidiu expor que era soropositivo. “Eu estava um pouco preocupado em fazê-lo porque havia pessoas com quem trabalhava profissionalmente, mas depois de um tempo eu percebi que não me importava – eu estava tão bravo. Eu queria canalizar essa raiva em algo construtivo e percebi que haveria muitas pessoas que não teriam a coragem de falar sobre isso”. Um de seus amigos que havia feito uma tatuagem anteriormente com Malvina, após ler sua mensagem no Facebook, entrou em contato com o dono do estúdio para se queixar, enquanto outro amigo que havia agendado um horário com a mesma tatuadora ligou cancelando o compromisso. O estúdio foi alvo de críticas de entidades de defesa de portadores do HIV por submeter Curtis a “estigmas e discriminação”.
Maxime Plescia-Buchi dono do Sang Bleu respondeu o e-mail que Curtis o enviou: “Deploro o que aconteceu, mas não posso forçar ninguém a fazer algo que não se sente confortável. Não é uma política em Sang Bleu discriminar e a maioria dos artistas não se importaria. Ficaria feliz em tatuá-lo, se você quiser. Eu pessoalmente tenho muitos clientes HIV positivos. É o que posso lhe oferecer. Caso contrário, a única pessoa a responder pela situação é Malvina pessoalmente, porque os artistas são contratados independentes e não são funcionários da Sang Bleu “.
Curtis deixou um comentário no Instagram de Malvina Wisniewska queixando-se de como ele havia sido tratado. Ela o respondeu em uma série de mensagens enviadas ao Buzzfeed News, explicando que ela estava nervosa sobre contrair HIV ao tatuá-lo, “é uma escolha pessoal, não discriminação”. Em resposta Curtis escreveu: “Recusar servir alguém com base em seu status de HIV é classificado como Discriminação direta sob o Lei da Igualdade de 2010. Suas ações foram chocantes e decepcionantes … Eu escolhi divulgar meu status por respeito. Eu poderia facilmente ter mentido, mas eu escolhi a honestidade. A discriminação é sempre inaceitável.”
Nas redes sociais, Malvina Wisniewska negou ter agido de forma preconceituosa. Explicou que no ano passado, enquanto tatuava um cliente soropositivo se feriu com um objeto cortante, e por isso teve que ser submetida a um tratamento posterior à exposição ao vírus para prevenir a contaminação que a levou a um quadro depressivo. Quando soube que Curtis era soropositivo, entrou em pânico e não conseguiu atendê-lo. “Eu não recuso nenhum serviço, incluindo para clientes com HIV ou hepatite. Já tatuei muitos clientes com HIV e hepatite B no passado, tendo grandes resultados. Durante a minha última sessão com um cliente HIV positivo, tive contato com um objeto afiado durante a sessão e depois tive que realizar um tratamento PEP (Profilaxia Pós-Exposição), muito destrutivo e difícil. Como leva quase metade de um ano para ter um resultado final de contaminação, o tempo de espera foi a parte mais difícil e causou um monte de tristeza e depressão na minha vida. Se meu diagnóstico desse positivo, isso significaria um fim em potencial para minha carreira. Foi muito traumático e me afetou tanto fisicamente como emocionalmente, e o Sr. Curtis foi a primeira pessoa com quem eu tive que trabalhar depois desse incidente. Naquele dia eu não me senti forte o suficiente como artista para tatuar esse projeto geométrico, bastante difícil com um alto padrão que eu tento oferecer a todos os meus clientes. Meu estilo de tatuagem é considerado um dos mais difíceis, requer um alto nível de concentração e paz de espírito. Durante todos os meus atendimentos a clientes soropositivos, eu nunca me senti estressada ou intimidada, mas depois do incidente, na ocasião, eu me senti em pânico, especialmente porque o senhor Curtis foi o primeiro cliente soropositivo desde aquele tempo. Naquele mesmo dia eu informei ao senhor Curtis sobre o meu incidente médico, mas naquele momento isso não importava para ele, ele simplesmente não se importou com a minha experiência anterior não foi relevante para ele. O senhor Curtis escreveu vários comentários negativos no meu Instagram, escreveu para o dono do estúdio e entrou em contato com um jornalista do Buzzfeed dando voz a sua raiva. A principal reclamação do senhor Curtis foi a falta de uma justificativa minha cara a cara. Ele não mostrou nenhum entendimento ou empatia pelas minhas experiências. Não houve nada que eu pudesse fazer para pará-lo de me culpar em público. Eu estava em pânico, muito vulnerável com minhas limitações. Em momentos com este é muito difícil operar mesmo no mais simples nível, e ainda mais difícil é dizer a alguém que você não está apta a fazer um projeto já combinado.” Após o incidente Malvina Wisniewska foi afastada do Sang Bleu.
Curtis diz que gostaria de um “reconhecimento” de que o que eles fizeram é errado, tanto do estúdio quanto da artista. Ele também está pressionando o estúdio para que eles declarem nas mídias sociais que não discriminam pessoas soropositivas e que seja feita uma doação de €1000 para uma instituição de caridade do HIV.
Em um comunicado feito ao Buzzfeed News, Sang Bleu disse: “O estúdio Sang Bleu tem uma forte posição anti-discriminação. Um artista recusou-se a fazer uma tatuagem por motivos pessoais. Sang Bleu imediatamente ofereceu um artista alternativo para o mesmo serviço. O cliente não aproveitou a oferta e o depósito dele foi devolvido na íntegra. Lamentamos o ocorrido e estamos em contato com ele para tentar resolver suas preocupações “.
Malvina Wisniewska continua trabalhando no Sang Bleu. O estúdio fez uma doação ao GMFA – The Gay Men’s Charity no Reino Unido. Em seu Twitter em resposta a uma publicação de Curtis, o estúdio publicou: “Fico feliz que pudéssemos trabalhar juntos e dar um primeiro passo para mostrar os valores que todos defendemos. Mas é um esforço diário mais do que nunca”. Curtis em resposta publicou: “@sangbleu também doou para @GMFA_UK! Estou tão feliz em ver a positividade que vem de um triste incidente. Obrigado @mxmttt’’.
Por lidarmos diretamente com sangue, com pele e executarmos algo que é permanente e envolve um processo de cicatrização, é uma profissão cheia de riscos e grandes responsabilidades. Trabalho com tatuagens há cerca de quatro anos, e neste tempo eternizei diversas histórias, atendi muitos clientes e dentre eles dois que foram extremamente sinceros, transparentes e me disseram serem soropositivos. Minha reação? Agradecer a sinceridade, a confiança e principalmente a preocupação com a minha segurança. Realizei as duas tatuagens? Claro que sim. Quando entrego o termo de consentimento para meus clientes preencherem, espero que todos estejam sendo sinceros em suas respostas, mas não tenho como ter 100% de certeza sobre isso, ou algum cliente pode ter algo em seu sangue e nem mesmo saber. Em cada tatuagem que faço o cuidado é sempre o mesmo: biossegurança em primeiro lugar, tanto para o cliente como para mim. O cuidado tem que ser o mesmo em todos os procedimentos, indiferente do meu cliente ser ou não soropositivo. Responsabilidade e respeito sempre.